Homem processa mulher e acaba condenado a pagar mais de R$ 60 mil em Santa Adélia

 O Tribunal de Justiça de São Paulo, comarca de Santa Adélia, proferiu uma sentença bastante curiosa nos autos do processo nº 1000785-98.2023.8.26.0531 envolvendo a discussão sobre uma caminhonete.

Um cidadão local acionou a Justiça alegando ter quitado o valor de uma Volkswagen Amarok e pediu a entrega do documento de transferência (CRV). Em sua defesa, a mulher processada apresentou provas de que parte do pagamento do veículo – cerca de R$ 60 mil – havia sido feito por ela, inclusive com comprovantes de lances do consórcio e parcelas de financiamento quitadas em nome do requerente.

O juiz Bruno Igor Rodrigues Sakaue concluiu que Requerente não comprovou a quitação integral do veículo, reconhecendo a dívida e julgando improcedente o pedido do autor, não tendo direito ao Documento de Transferência. Já a reconvenção apresentada pela mulher foi considerada procedente, condenando o autor da ação ao pagamento de R$ 60.754,04, valor que ainda será corrigido e acrescido de juros de mora, ultrapassando R$ 70 mil.

Além disso, o autor foi condenado ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios de 10% sobre o valor da condenação. Advogou para o comprador o Dr. Paulo Roberto Capriotti Rubio e para a vendedora o Dr. Ricardo Augusto Bragiola.

👉 Em resumo: quem entrou com a ação acabou condenado a pagar uma quantia maior do que a que discutia em juízo. Abaixo a sentença:

SENTENÇA

Orlando Gomes ajuizou a presente Ação de Obrigação de Fazer em face de Tamiles Jesus Andrade, alegando, em suma, que adquiriu da requerida o veículo Volkswagen Amarok, placa GIK1F50, pelo valor de R$ 73.054,81, pago por meio de carta de crédito de consórcio. Sustenta que, apesar de ter quitado o preço, a ré se recusa a entregar o Certificado de Registro de Veículo (CRV) devidamente assinado, o que o impede de regularizar a propriedade do bem. Requereu a concessão de tutela de urgência para a entrega imediata do documento, sob pena de multa diária e, ao final, a procedência do pedido. Pleiteou ainda os benefícios da justiça gratuita.

A petição inicial foi instruída com documentos (fls. 8/28). Os benefícios da justiça gratuita foram deferidos ao autor (fls. 35). O pedido de tutela de urgência foi indeferido (fls. 35, 43).

Citada (fls. 48), a ré apresentou contestação com reconvenção (fls. 49/72). Em sua defesa, sustentou a exceção do contrato não cumprido, afirmando que o autor não quitou o valor integral do veículo. Alegou que o preço total acordado foi de R$ 98.754,00 e que, para viabilizar o negócio, a própria ré pagou os lances das cartas de consórcio do autor, nos valores de R$ 19.700,00 e R$ 23.300,00, além de duas parcelas de um financiamento de um veículo dado como parte do pagamento, totalizando um débito remanescente de R$ 60.754,04. Em sede de reconvenção, pleiteou a condenação do autor ao pagamento do referido valor.

Houve réplica e contestação à reconvenção (fls. 78/101), na qual o autor negou o débito e sustentou que os valores foram pagos por terceiro.

A decisão de fls. 73 deferiu a gratuidade de justiça à ré/reconvinte. O feito foi saneado às fls. 101, rejeitando-se os embargos de declaração opostos pela ré (fls. 108).

As partes foram instadas a se manifestarem sobre os documentos e a especificarem provas.


FUNDAMENTAÇÃO

O feito comporta julgamento antecipado, nos termos do artigo 355, I, do CPC, sendo a prova documental suficiente para o deslinde da controvérsia.

A controvérsia central reside em apurar se o autor quitou integralmente o preço do veículo adquirido da ré, de modo a poder exigir a entrega do documento de transferência, ou se, ao contrário, subsiste um débito que justifique a recusa da vendedora, com base na exceção do contrato não cumprido.

Trata-se de contrato de compra e venda de veículo entre particulares, regido pelo Código Civil. O autor, na ação principal, busca o cumprimento de uma obrigação de fazer (entrega de documento), enquanto a ré, na reconvenção, cobra valores que alega terem sido pactuados e não pagos.

O artigo 476 do Código Civil consagra o instituto da exceptio non adimpleti contractus, segundo o qual nenhum dos contratantes, antes de cumprir a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

O autor comprovou a relação jurídica e o pagamento de R$ 73.054,81 por meio da carta de crédito do consórcio. A ré, por sua vez, não negou o recebimento deste valor, mas afirmou que ele corresponde apenas a parte do preço ajustado, restando um débito de R$ 60.754,04.

O ônus de provar a existência de tal débito, fato impeditivo do direito do autor e constitutivo de seu próprio direito na reconvenção, era da ré (art. 373, II, CPC). E desse ônus ela se desincumbiu.

Foram juntados aos autos os comprovantes de pagamento dos boletos de lance das cartas de consórcio do autor (R$ 19.700,00 e R$ 23.300,00), ambos indicando a ré como pagadora. Também foram juntados comprovantes de pagamento de duas parcelas de financiamento de outro veículo do autor, nos valores de R$ 718,52 e R$ 731,42.

O autor, em defesa, sustentou que tais pagamentos teriam sido feitos por terceiro (Miguel Arcanjo Crepaldi), baseando-se apenas em uma anotação manuscrita (“valor pago p/ Miguel”), sem data, assinatura ou outro elemento que lhe conferisse autenticidade. Tal prova é frágil e incapaz de se sobrepor aos comprovantes bancários apresentados.

Caberia ao autor provar que reembolsou a ré ou que havia acordo diverso, mas não produziu qualquer prova nesse sentido. Limitou-se a negar o débito.

Assim, restou comprovado que o autor não cumpriu integralmente sua obrigação contratual, sendo devedor do valor apontado pela ré. Diante disso, a recusa da ré em entregar o documento de transferência do veículo é legítima, nos termos do art. 476 do Código Civil.


DISPOSITIVO

Diante do exposto:

  1. Julgo improcedente o pedido formulado na ação principal por Orlando Gomes em face de Tamiles Jesus Andrade, com resolução de mérito (art. 487, I, CPC).

  2. Julgo procedente o pedido formulado na reconvenção por Tamiles Jesus Andrade em face de Orlando Gomes, para condenar o reconvindo ao pagamento da quantia de R$ 60.754,04, corrigida monetariamente pela Tabela Prática do TJSP desde o ajuizamento da reconvenção, acrescida de juros de mora de 1% ao mês, a contar da intimação para contestar a reconvenção.

  3. Fica a obrigação da reconvinte de entregar o Certificado de Registro de Veículo (CRV) devidamente preenchido e assinado condicionada ao pagamento integral do débito reconhecido no item 2.

Em razão da sucumbência na ação principal e na reconvenção, condeno o autor ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% sobre o valor da condenação, nos termos do art. 85, §2º, CPC. A exigibilidade dessas verbas fica suspensa em razão da justiça gratuita deferida a ambas as partes.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Santa Adélia, 26 de agosto de 2025.

Dr. Bruno Igor Rodrigues Sakaue
Juiz de Direito




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